quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Jesus e as Riquezas Mundanas

A relação do Cristianismo com as riquezas mundanas gera diversas polêmicas históricas, políticas e sociológicas. Gostaria porém de fazer alguns comentários exegéticos e teológicos sobre o assunto. Creio que essa questão se encontra muito bem definida no evento em que o jovem rico encontra Jesus (Mc 10, 17:31; Mt 19, 16:30; Lc 18, 18:30). Para quem não lembra, eis o trecho segundo São Lucas:

São Lucas 18

18 E perguntou-lhe um certo príncipe, dizendo: Bom Mestre, que hei de fazer para herdar a vida eterna?

19 Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém há bom, senão um, que é Deus.

20 Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe.

21 E disse ele: Todas essas coisas tenho observado desde a minha mocidade.

22 E quando Jesus ouviu isto, disse-lhe: Ainda te falta uma coisa; vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; vem, e segue-me.

23 Mas, ouvindo ele isto, ficou muito triste, porque era muito rico.

24 E, vendo Jesus que ele ficara muito triste, disse: Quão
dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!

25 Porque é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.

26 E os que ouviram isto disseram: Logo quem pode salvar-se?

27 Mas ele respondeu: As coisas que são impossíveis aos homens são possíveis a Deus.

28 E disse Pedro: Eis que nós deixamos tudo e te seguimos.

29 E ele lhes disse: Na verdade vos digo que ninguém há, que tenha deixado casa, ou pais, ou irmãos, ou mulher, ou filhos, pelo reino de Deus,

30 Que não haja de receber muito mais neste mundo, e na idade vindoura a vida eterna.

As riquezas, em si, não levam nem à salvação, nem à perdição. São neutras. Um homem pode inclusive ser chamado Justo mesmo sendo rico. A natureza humana, porém, é tal que é difícil para nós mantermo-nos longe das tentações uma vez que tenhamos os meios para obtê-las, seja através do poder financeiro ou político, e por isso Jesus nos alerta para os perigos inerentes a esse caminho, sem com isso reprovar taxativamente os que porventura o trilhem como veremos a seguir.

A leitura mais estimulante, parece-me, é esta que vemos em São Lucas pois logo depois daquele encontro com o mau rico, São Lucas nos apresenta um encontro de Jesus com São Zaqueu, um bom rico (veja o ícone ortodoxo em http://www.thehtm.org/images/a-312.jpg ):
São Lucas 19

1 E, tendo Jesus entrado em Jericó, ia passando.

2 E eis que havia ali um homem chamado Zaqueu; e era este um chefe dos publicanos, e era rico.

3 E procurava ver quem era Jesus, e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura.

4 E, correndo adiante, subiu a um sicômoro para o ver; porque havia de passar por ali.

5 E quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, viu-o e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, porque hoje me convém pousar em tua casa.

6 E, apressando-se, desceu, e recebeu-o alegremente.

7 E, vendo todos isto, murmuravam, dizendo que entrara para ser hóspede de um homem pecador.

8 E, levantando-se Zaqueu, disse ao Senhor: Senhor, eis que eu dou aos pobres metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, o restituo quadruplicado.

9 E disse-lhe Jesus: Hoje veio a salvação a esta casa, pois também este é filho de Abraão.

10 Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido.

Enquanto o “príncipe” hesita em ser fonte de benesses, São Zaqueu utiliza sua riqueza para auxiliar o próximo sem deixar de desfrutá-la. Fica bem claro que se despojar das riquezas é algo bem mais profundo do que simplesmente doar tudo materialmente. Já dizia S. João Crisóstomo que o pobre que vive ardendo de desejo pela riqueza peca mais gravemente do que muitos ricos. Daí que certas ideologias que vivem de cultivar a inveja da riqueza serem tão tipicamente anti-
cristãs apesar de se apresentarem com pretensões de motivações bondosas.

É apenas com tal entendimento que vamos compreender o Sermão do Monte: Bem-aventurados os *pobres de coração* porque *deles* é o Reino dos Céus. Muitos pobres materiais não são pobres de coração. Vivem desejando a queda da classe dos ricos, sonhando com a ruína alheia e com a fortuna por ela mesma, com o fracasso do vizinho melhor de vida, seja uma pessoa ou um país, do parente afortunado, enfim de todos que estão melhor financeiramente que eles, consumidos por inveja, ganância e ressentimento. Igualmente, alguns po ucos ricos não poderiam fazer menor caso da fortuna que têm em mãos.

Não importa, para nossa salvação espiritual, se temos dinheiro nas mãos ou não. Importa se ele está em nosso coração ou não. O dinheiro *nunca* deve estar em nosso coração, pois este é templo sagrado de Deus. Infelizmente parece que nosso povo é mais “dinheirista” do que cristão. Choca-se mais com crimes de roubo de dinheiro na política do que com milhares de assassinados todos os anos. Ter dinheiro no coração não é simplesmente desejar o dinheiro ardentemente mas achar que o dinheiro vai solucionar tudo, que bastará dar ou ter dinheiro para que os problemas desapareçam. O dinheiro não tem esse poder. Ter dinheiro no coração é também se indignar com roubos e corrupções e ficar indiferente aos atentados contra a vida. Não por outro motivo no capítulo 11 de São Marcos, logo depois do encontro com o mau rico, temos o episódio da expulsão dos vendedores do Templo. Jesus faz externamente aquilo que devemos fazer internamente, isto é, expulsar do templo de Deus em nossas almas o dinheiro, pois Deus se deu a nós de graça para que existindo em nós possamos ofertá-Lo a Ele mesmo, como é dito durante a Anamnese (Rememoração) na Divina Liturgia ortodoxa: “O que é Teu, recebendo-o de Ti, nós Te oferecemos em tudo e por tudo“. Nada temos a ofertar, nem ao próprio Deus, que não tenha sido dado por Ele mesmo anteriormente. Dele provém toda virtude, bondade, graça e alegria.

Aquele que não tem riquezas materiais no coração é que é o “pobre de coração”, mesmo que seja “rico de bolso”. E é importante que mantenhamos isso na cabeça para não cultivarmos determinadas neuras de que se tivermos uma boa condição financeira então estaremos condenados ao inferno, pensamento pernicioso que é talvez responsável por boa parte das mazelas do Brasil em um tipo de auto-sabotagem subconsciente. De fato, no Brasil pensamos que o dinheiro é algo sujo e se vemos alguém rico logo ficamos pensando que “sujeiras” ele deve ter cometido para chegar a tal estado. Isto se dá porque subconscientemente, achamos a riqueza mundana algo sujo e que só pode ser obtida pela sujeira. E assim, apenas os desonestos se interessam por ela e desfrutam o poder de influenciar a sociedade que ela proporciona. Se os bons e os justos brasileiros tirarem essa imagem da riqueza da cabeça poderão eles mesmos obtê-la, permanecendo pobres de coração, e ser a fonte de boa influência nas altas rodas. Já é um ditado popular, e bastante sábio, a sentença que diz que a culpa do mal no mundo não da ação dos maus, mas da omissão dos bons.

Tanto a obtenção da riqueza é algo neutro em si que uma das parábolas mais marcantes de Jesus traz uma imagem praticamente capitalista. E está ligada também ao ciclo “Mau rico-Bom rico” para nos mostrar a dinâmica da relação do homem com a riqueza mundana. Vejamos o trecho, ainda em São Lucas 18, seguindo logo o que foi mencionado por último:

11 E, ouvindo eles estas coisas, ele prosseguiu, e contou uma parábola; porquanto estava perto de Jerusalém, e cuidavam que logo se havia de manifestar o reino de Deus.

12 Disse pois: Certo homem nobre partiu para uma terra remota, a fim de tomar para si um reino e voltar depois.

13 E, chamando dez servos seus, deu-lhes dez moedas, e disse-lhes: Negociai até que eu venha.

14 Mas os seus concidadãos odiavam-no, e mandaram após ele embaixadores, dizendo: Não queremos que este reine sobre nós.

15 E aconteceu que, voltando ele, depois de ter tomado o reino, disse que lhe chamassem aqueles servos, a quem tinha dado o dinheiro, para saber o que cada um tinha ganhado, negociando.

16 E veio o primeiro, dizendo: Senhor, a tua moeda rendeu dez moedas.

17 E ele lhe disse: Bem está, servo bom, porque no mínimo foste fiel, sobre dez cidades terás autoridade.

18 E veio o segundo, dizendo: Senhor, a tua moeda rendeu cinco moedas.

19 E a este disse também: Sê tu também sobre cinco cidades.

20 E veio outro, dizendo: Senhor, aqui está a tua moeda, que guardei num lenço;

21 Porque tive medo de ti, que és homem rigoroso, que tomas o que não puseste, e colhes o que não semeaste.

22 Porém, ele lhe disse: Mau servo, pela tua boca te julgarei. Sabias que eu sou homem rigoroso, que tomo o que não pus, e colho o que não semeei;

23 Por que não puseste, pois, o meu dinheiro no banco, para que eu, vindo, o exigisse com os juros?

24 E disse aos que estavam com ele: Tirai-lhe a moeda, e dai-a ao que tem dez moedas.

25 (E disseram-lhe eles: Senhor, ele tem dez moedas.)

26 Pois eu vos digo que a qualquer que tiver ser-lhe-á dado, mas ao que não tiver, até o que tem lhe será tirado.

Esta passagem se refere a todas as graças de Deus de forma geral. Quer dizer que Deus nos confere dons que devemos utilizar e desenvolver e que aquele que não desenvolve acabará perdendo o dom. Não é possível porém, deixar de considerar a imagem quase capitalista e “especuladora” que Jesus utilizou nessa passagem para dar o ensinamento.

Houve por bastante tempo uma discussão sobre se o casamento seria algo bom. Isso se devia a heresias que pregavam que apenas o ser humano celibatário vivia de acordo com a vontade de Deus. Aqueles que defendiam o casamento apontavam que a união do homem e da mulher
é usada diversas vezes nas Santas Escrituras como imagem da união de Deus com a Igreja. Destacavam, a partir daí, que não poderia ser utilizado algo ruim como imagem de algo bom. Pode-se também dizer que se o lucro, o investimento capitalista e mesmo a especulação financeira fossem algo mal em neles mesmos, Deus não os utilizaria como imagem de algo tão bom e maravilhoso como a ação de Sua Graça sobre a humanidade.

O homem das dez moedas, assim como o das cinco moedas, eram pobres de coração e por isso herdaram as cidades, símbolos do Reino; enquanto o que não investiu e não multiplicou sua riqueza era o que era de fato “rico de coração” apesar de ter permanecido “pobre de bolso”.
Sua moeda foi dada ao mais sábio que por sua vez saberia transformar aquele pequeno investimento inicial em dons. Seja a graça de Deus a inteligência, o dom da palavra, o dom da oração, do entendimento ou mesmo a riqueza mundana, temos o dever santo e sagrado de multiplicá-lo e compartilhá-lo com os nossos próximos.

No desenho animado “José: Rei dos Sonhos”, que conta a história deste personagem do Antigo Testamento*, tem uma música “à la Disney”** cujo refrão resume bem o espírito dessa mensagem:

“Você tem que dar um pouco mais do que recebeu, tem que deixar um pouco mais do que estava aqui. É a própria medida da sua alma que está em jogo. Você tem que dar um pouco mais do que recebeu”.

Tal é a mensagem da parábola do Mau Investidor, que é tambem o Mau Pobre e a imagem que se deve seguir, personificada em São Zaqueu e no Patriarca José, que representam o Bom Rico, para que se dê bom uso à riqueza, de modo que na fortuna ou na miséria, mantenhamos sempre Deus, e unicamente Ele, no templo de nosso coração. Viver desejando sempre a Deus e o bem do próximo e não a riqueza, qualquer que seja nossa condição material.

Abraços, que Jesus Cristo na Santíssima Trindade e sua Santa Mãe nos abençõe! Peçamos pelas orações de São Zaqueu e do Patriarca José, para nos iluminar nesse tópico.
Fabio Lins

* Vejam ícones ortodoxos do Patriarca José:
http://www.comeandseeicons.com/j/inp109.jpg e
http://www.thehtm.org/images/a-77.jpg

** Vejam o clipe em: http://youtube.com/watch?v=6WDXCEmpuYI