quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Por que os homens gostam da Igreja Ortodoxa

Contribuição de Edward Wolf

Por que os homens gostam da Igreja Ortodoxa
por Frederica Mathewes-Green

Nesses tempos em que as igrejas sofrem da Síndrome dos Machos Ausentes, os homens comparecem às igrejas ortodoxas em quantidades que, se não são numericamente impressionantes, são ao menos proporcionalmente intrigantes. Talvez esta seja a única igreja que atraia homens na mesma quantidade que mulheres. Conforme observou Leon Podles em seu livro The Church Impotent: The Feminization of Christianity (A Igreja Impotente: a Efeminação do Cristianismo) : "Os ortodoxos são os únicos cristãos que compõe, ou precisam compor, música litúrgica em basso profundo".

Em vez de tentar descobrir o porquê disso, enviei emails a cem homens ortodoxos, a maioria dos quais entrou na Igreja já adultos. O que eles acham que torna esta igreja em particular atrativa aos homens? Suas respostas, que relato abaixo, podem dar algumas dicas aos líderes das demais igrejas, que tentam segurar os rapazes nos bancos.

Desafios. A palavra mais citada pelos homens é "desafio". A Ortodoxia é "ativa, e não passiva". "É a única igreja onde você tem que se adaptar a ela, e não ela se adaptar a você". "Quanto mais tempo nela, mais a gente percebe como ela é exigente".

A "postura austera dos ritos ortodoxos" é parte do apelo. Os dias de jejum de carne e derivados de leite, "ficar de pé por horas a fio, fazer prostrações, ficar sem comer e beber [antes da comunhão]...Quando chegamos ao fim, a gente fica com a impressão de que cumpriu um desafio". "A Ortodoxia apela ao desejo do homem de se auto-educar pela disciplina".

"Na Ortodoxia, a questão da luta espiritual está por toda parte; santos, inclusive santas, são guerreiros. Luta requer coragem, fortaleza e heroísmo. Somos chamados a sermos 'lutadores' contra o pecado, a sermos 'atletas', conforme disse São Paulo. E é dado um prêmio ao vitorioso. O fato de que você tem que 'lutar' durante a liturgia ficando de pé, em si, é um desafio que os homens estão dispostos a assumir".

Um recém-convertido resumiu assim: "A Ortodoxia é séria. É difícil. É exigente. Ela tem a ver com misericórdia, mas também com superar-se a si próprio. Sou desafiado de maneira profunda, a 'não me sentir bem comigo mesmo', a me tornar santo. É rigorosa, e nesse rigor é que encontro libertação. E, sabe, minha esposa também".

Regras claras. Muitos mencionaram o fato de que apreciam a clareza de conteúdo desses desafios, ou seja, o que eles são supostos a fazer. "A maioria dos homens se sentem mais confortáveis quando sabem o que é esperado deles". "A Ortodoxia tem limites claros". "É mais fácil aos homens se expressarem em adoração quando há regras sobre como as coisas funcionam – especialmente quando essas regras são tão simples e funcionais que a gente simplesmente pode começar a praticá-las desde já".

"As orações da Igreja – as orações da manhã, da noite, antes e depois das refeições etc. – dão aos homens uma maneira de adentrar à espiritualidade sem que se sentam sob holofotes ou sem que se preocupem se estão parecendo estúpidos por não saberem o que falar".

Eles apreciam as posturas físicas bem definidas que formarão o caráter e o entendimento. "As pessoas já começam a aprender os rituais e o simbolismo, por exemplo, fazendo o sinal da Cruz. O sistema disciplinar torna a pessoa ciente de sua relação com a Trindade, com a Igreja e com todos que encontra".

Objetivo. Os homens apreciam o fato de que tal desafio tem um objetivo: a união com Deus. Eis o que uma pessoa disse a respeito de sua igreja anterior: "Eu sentia que não estava indo a lugar algum na minha vida espiritual (se é que tinha algum lugar a chegar – eu já estava lá, não é mesmo?). Mas algo, vai saber o quê, estava faltando. Será que não tem NADA que eu deveria estar fazendo, Senhor?"

A Ortodoxia preserva e transmite a antiga sabedoria cristã sobre como progredir a essa união, chamada de theosis. Cada sacramento, cada exercício espiritual, é feito para levar a pessoa – corpo e alma – adiante nessa contínua consciência da presença interna de Cristo, assim como em todos os seres humanos. Assim como um tecido fica saturado de tinta por osmose, ficamos saturados de Deus por theosis.

Um catecúmeno disse que acha os ícones úteis para resistir a pensamentos indesejados. "Se você fechar os olhos às tentações visuais, há várias imagens na memória que podem lhe causar problemas. Mas se a gente se cercar de ícones, então você terá a chance de olhar para algo tentador ou para algo santo".

Um padre disse: "Os homens precisam de desafio, de objetivo, uma aventura talvez – em termos primitivos, uma caçada. O Cristianismo Ocidental perdeu o aspecto ascético, isto é, o aspecto atlético da vida cristã. Este é o propósito do monasticismo, que surgiu no Egito em grande parte como um movimento masculino. As mulheres também entraram na vida monástica, e nossos antigos hinos falam de mulheres mártires mostrando 'coragem masculina'".

"A Ortodoxia enfatiza o FAZER… Os homens são orientados a AÇÃO".

Ausência de sentimentalismos. No livro Church Impotent acima citado (e recomendado por vários dos homens que consultei), Leon Podles apresenta sua teoria sobre como a piedade, no Cristianismo Ocidental, se efeminou. Nos séculos XII e XIII surgiu uma tendência particularmente frágil, até mesmo erótica, de devoção, segundo a qual o fiel deveria retratar a si próprio (ao invés da Igreja) como Noiva de Cristo. O "Misticismo de Noivado" foi entusiasticamente adotado por mulheres devotas, e deixou uma marca profunda no Cristianismo Ocidental. É compreensível que tenha menos apelo aos homens. No Ocidente, por séculos, os homens que escolhem o ministério têm sido estereotipados como sujeitos efeminados. Um fiel, ortodoxo de longa data, afirmou que, de fato, parece que o Cristianismo Ocidental é uma "história de amor escrita por mulheres para mulheres".

A Igreja Oriental escapou desse Misticismo de Noivado porque o grande cisma entre Oriente e Ocidente já tinha acontecido. Os homens que consultei expressaram um profundo desgosto por esse frágil e gentil Jesus ocidental. "O Cristianismo americano, nos últimos dois séculos, tem se efeminado. Ele apresenta Jesus como um amigo, um namorado, alguém que 'anda comigo e fala comigo'. Trata-se de uma imagem encantadora às mulheres, que necessitam de vida social. Ou aquela que retrata Jesus chicoteado, morto na cruz. Nenhuma delas é o modelo de Cristo que os homens típicos se identificam" .

Durante a Liturgia, "os homens não querem rezar à moda ocidental, com as mãozinhas abraçadas uma a outra, lábios apertados e expressão facial de serenidade forçada". "É um tal de homem dando a mão para homem e cantando musiquetas de acampamento" . "Estrofes sobre 'estender a mão para receber Seu abraço', 'querer tocar Sua face', enquanto estiver sendo 'inundado pelo poder de Seu amor' – são canções difíceis para um homem cantar a outro Homem".

"Um amigo meu me disse que a primeira coisa que ele observa quando entra numa igreja são as cortinas. Isto lhe mostra quem está dando as ordens naquela igreja, e que tipo de cristão quer atrair".

"Os homens querem ser desafiados a lutar por uma causa gloriosa e honorável, e se sujarem no caminho, ou se jogar no sofá com muita cerveja, pizza e futebol. Mas a maioria de nossas igrejas quer que nos comportemos como cavalheiros, mantendo nossas mãos e bocas bonitas e limpas".

Um dos homens me disse que os cultos em sua igreja pentecostal eram "meras experiências emotivas. Sentimentos. Lágrimas. Repetidas dedicações de sua vida a Cristo, em grandes e emotivos encontros. Cantar músicas emotivas, levantando e balançando as mãos. Até mesmo a leitura das Escrituras é feita para produzir experiências emotivas. Eu sou um homem prático, eu quero fazer as coisas, e não sair por aí falando e se emocionando com as coisas! Como homem de negócios, sei que nada acontece sem esforço, energia e investimento. Por que na vida espiritual seria diferente?

Uma pessoa que visitou diversas igrejas católicas me disse: "Elas eram convencionais, fáceis e modernas, enquanto eu e minha esposa procurávamos algo tradicional, difícil e contracultural, algo antigo e marcial". Um catecúmeno me disse que em sua igreja não-denominacional o "[c]ulto era raso, casual, remendado com o que houvesse de mais atual; às vezes a gente sentava, às vezes ficava de pé, sem muito ritmo ou razão. Fiquei pensando como a tradição seria de grande ajuda nisso tudo".

"Fiquei furioso na última quarta-feira de cinzas, quando o padre proferiu uma homilia dizendo que o verdadeiro significado da Quaresma é aprender a amarmos a nós mesmos. Isto me forçou a perceber que eu estava de saco cheio desse Cristianismo americano burguês".

Um padre convertido disse que os homens são atraídos pelos elementos perigosos da Ortodoxia, que envolvem "a abnegação de um guerreiro, o risco aterrorizante de amar seus inimigos, as fronteiras desconhecidas para as quais a humildade nos chama. Elimine qualquer uma dessas qualidades e nos tornaremos uma fabriqueta de igrejas: cores bonitas e clientela empanada".

"Os homens podem se tornar altamente cínicos quando percebem que alguém está tentando manipular suas emoções, especialmente em nome da religião. Eles apreciam a objetividade da adoração ortodoxa. Ela não é destinada a despertar emoções religiosas mas a desempenhar um dever objetivo".

Apesar disso, há algo na Ortodoxia que oferece "um profundo romance masculino. Você sabe do que estou falando? A maioria dos nossos romances é rosa, mas este romance é feito de espadas e heroísmo".

De um diácono: "As igrejas evangélicas chamam os homens a serem passivos e bonzinhos. As igrejas ortodoxas chamam os homens a serem corajosos e atuantes".

Jesus Cristo. O que traz os homens à Ortodoxia não é apenas o desafio ou o mistério. O que os traz é o Senhor Jesus Cristo. Ele é o centro de tudo o que a Igreja faz ou diz.

Diferentemente das outras igrejas, "a Ortodoxia apresenta um Jesus robusto" (e até mesmo uma Virgem Maria robusta que, a propósito, é honrada em um hino como sendo "nossa Capitã, Rainha da Guerra"). Muitos utilizaram o termo "marcial" ou se referiram à Ortodoxia como os "fuzileiros navais" do Cristianismo. (A guerra é contra o pecado autodestrutivo e as potestades celestiais invisíveis, e não contra as pessoas, claro).

Contrastou-se essa qualidade "robusta" com o "retrato efeminado de Jesus com o qual eu fui criado. Nunca tive um amigo que não se esforçasse muito para evitar encontrar gente que fosse assim". Embora atraído por Jesus Cristo quando adolescente, "sentia-me envergonhado dessa atração, como se fosse algo que um homem de verdade não levaria a sério, algo semelhante a brincar de boneca".

Um padre disse: "Cristo, na Ortodoxia, é um militante, um Jesus forte, que toma o inferno como cativo. O Jesus ortodoxo lança fogo sobre a terra. No Santo Batismo, rezamos para que os recém-alistados combatentes de Cristo, homens e mulheres, possam "manter-se sempre combatentes invencíveis".

Após anos na Ortodoxia, um homem achou os cânticos de Natal de uma igreja protestante "chocantes, até mesmo pavorosos". Comparados aos hinos natalinos da Ortodoxia, "o pequeno Senhor Jesus adormecido sobre o feno não tem quase nada a ver com o Logos eterno que entra de maneira inexorável, silenciosa e heróica no tecido da realidade criada".

Continuidade. Diversos ortodoxos intelectualmente convertidos começaram lendo a história da Igreja e os escritos dos primeiros cristãos. Com o tempo, eles tiveram de encarar a questão sobre qual das duas igrejas mais antigas, a Católica Romana ou a Ortodoxa, era a mais convincente quanto a ser a Igreja original dos Apóstolos.

Um ortodoxo de longa data afirmou que os homens gostam de "estabilidade: os homens podem confiar na Igreja Ortodoxa por causa da consistente e contínua tradição da fé, que se mantém pelos séculos". Um convertido afirmou: "A Igreja Ortodoxa oferece o que as outras são incapazes: continuidade com os primeiros seguidores de Cristo". Isto é continuidade, e não arqueologia; a igreja primitiva ainda existe e você pode fazer parte dela.

"O que me atraiu foi a promessa de Cristo de que as portas do inferno não prevaleceriam sobre a Igreja – e a união ortodoxa de fé, adoração e doutrina com a devida continuidade histórica".

Um sinônimo de continuidade é "tradição". Um catecúmeno me disse que tentou aprender tudo o que fosse necessário para interpretar as Escrituras, inclusive línguas antigas. "Eu queria cavar fundo, até as fundações, e confirmar tudo o que haviam me ensinado. Ao invés disso, quando mais em descia, tanto mais fraco tudo o que aprendi parecia ser. Percebi que, na verdade, eu apenas havia aprendido a manipular a Bíblia de maneira que eu pudesse sustentar qualquer coisa que eu pensasse. O único antídoto para o cinismo era a tradição. Se a Bíblia quisesse dizer alguma coisa, tinha que ser dentro de uma comunidade, com uma tradição que guiasse a leitura. Foi na Ortodoxia que encontrei o que procurava".

Homens equilibrados. Um padre me disse: "Há apenas dois modelos masculinos: ser 'homem' e forte, rude, cru, macho e provavelmente abusivo; ou ser sensível, bonzinho, reprimido e fracote. Mas na Ortodoxia, o masculino está unido ao feminino; é realista, 'nem macho nem fêmea', mas Cristo que 'une as coisas no céu e as coisas na terra'".

Outro padre comentou que, se um dos membros do casal é mais insistente em converter a família à Ortodoxia do que o outro, "quando ambos fazem confissões, com o tempo ambos se aprofundam e nenhum deles se torna tão dominante na relação espiritual".

Homens na liderança. Goste-se disso ou não, os homens simplesmente preferem ser liderados por homens. Na Ortodoxia, as fiéis fazem tudo o que os fiéis fazem, inclusive pregar, ensinar e liderar a irmandade da paróquia. Mas, por trás do iconostase, em torno do altar, é só para os homens. Uma pessoa resumiu o que os homens gostam na Ortodoxia assim: "Barbas!"

"É o ultimo lugar do mundo onde os homens não são condenados por serem homens". Em vez de toda aquela negatividade, os homens estão constantemente cercados por modelos positivos nos santos, nos ícones e no ciclo diário de hinos e histórias sobre a vida dos santos. Eis outro elemento concreto que os homens apreciam – há outros seres humanos a serem apreciados, e não apenas nuvens de termos etéreos. "A glória de Deus é um homem plenamente vivo", disse Santo Irineu. Um respondente acrescentou que "a melhor maneira de atrair um homem à Igreja Ortodoxa é mostrando-lhe um homem ortodoxo".

Mas nada que seja secundário, não importa o quanto seja bom, pode suplantar o principal. "Uma vida desafiadora não é o objetivo. Cristo é o objetivo. Um espírito livre não é o objetivo. Cristo é o objetivo. Ele é o expoente máximo da história, em torno do qual todos os homens e mulheres eventualmente se ajuntarão, a quem todos se curvarão, e quem toda língua confessará".

sábado, 17 de novembro de 2007

O que é afinal "imagem e semelhança"?


O que é afinal "imagem e semelhança"?

por Fabio Lins

"A expressão 'de acordo com a imagem Dele' claramente refere-se ao aspecto da natureza Dele que consiste de mente e livre-arbítrio, enquanto que "de acordo com Sua semelhança" significa semelhança em virtudes, na medida em que isso é possível."
S. João de Damasco


Na queda, o homem perdeu a semelhança: deixamos de ser veículos de expressão da virtude ,que só pode vir de Deus; e a imagem ficou "danificada": nossa mente fragmentou-se e nosso livre-arbítrio defeituoso, cheio de inúmeros pequenos e grandes vícios que lhe tolhem
a liberdade de escolha. Este "órgão de tomar decisões", estando doente, faz com que tomemos decisões erradas e "erremos o alvo" da nossa vida que é Deus. Este é que é o significado da palavra "pecado" no grego do Novo Testamento "hamartia": errar o alvo.

Erramos o alvo porque nosso livre-arbítrio é viciado, cheio de "compulsões", ou, como diziam os Pais da Igreja, "paixões" que tem o mesmo radical de "passivo" ou "passividade" (tanto que em inglês diz-se "passions"). Paixões, portanto, são o preciso contrário do que o mundo moderna prega. Ao invés de serem 'afirmações e expressões da individualidade' da pessoa, são exatamente impressões, marcas que o ambiente provoca na pessoa, moldando-a, tolhindo seu livre-arbítrio. Quanto mais cheia de paixões for a pessoa, mais dominada pelo ambiente ela está, menos liberdade ela tem e mais passiva ela é em face do que a cerca, seja a natureza, campanhas de marketing ou a sociedade.

É por isso que o caminho de restauração da imagem passa necessariamente pela via ascética, a via da profunda disciplina. Trata-se de, com o auxílio de Deus, disciplinar as escolhas e as
vontades. Por vezes vemos santos tomando radicais ações de mortificação e ficamos vivamente impressionados. Não estarão violentando-se? Quem já viu uma turba enfurecida de grupos rivais de torcedores brigando sabe que existem situações nas quais medidas violentas são inevitáveis para acalmar os ânimos. Realmente, é possível que a polícia exagere na mão da repressão. Igualmente é possível que alguns santos - que apesar de santos não possuíam a perfeição ideal já que apenas Nosso Senhor Jesus Cristo é sem pecados - tenham exageado a mão. Mas assim como a polícia reprime em favor dos inocentes em volta, o santo disciplina-se em favor da salvação. As compulsões em muitos de nós foram tão excitadas ao longo dos anos pelo reforço e repetição dos mau-hábitos, pelo feedback positivo da sociedade aos nossos vícios que é necessário um "choque" para aquietá-los. Descobrir a medida certa é sempre uma operação delicada e por isso mesmo é que a orientação de um pai espiritual é necessária para que o remédio - especialmente se tiver que ser forte - não ultrapasse a necessidade.

A reunião da mente e do coração é uma necessidade absoluta. Vemos o caso mais radical de tal separação nos psicopatas e sociopatas, nos quais seus pensamentos, quase sempre muito inteligentes, não encontram o menor eco em seu coração. Esta é a razão de muitas pessoas,e admitamos, nós mesmos, tomarmos atitudes "cruéis". Nossa decisão, nossa idéia, não está unida ao coração. Igualmente é o motivo de pessoas de "grande coração" tomarem rumos irracionais,
evidentemente danosos e ilógicos. O coração delas, desvinculado da razão, é qual um navio sem leme, um navegador sem mapa ou bússola. Reunindo inteligência e coração estamos desfazendo o "esfacelamento" da imagem divina em nós.

Para fazer esta reunião apropriadamente é necessário curar o "Nous" o "órgão" que nos permite "ver" Deus. Presentemente, este Nous ora é abalado pelas tempestades do coração, aprisionado pelos limites da mente, e ora é arrastado na lama pelas nossas "passividades compulsivas", as paixões. Por isso o treino ascético constante na oração e na quietude é necessário. Uma vez aquietados os algozes que o agridem, o Nous começa a "curar-se sozinho", ou, melhor dizendo,
considerando que Deus está constantemente "reenergizando-o" com Suas próprias energias para que possamos vê-Lo, ele pode seguir seu rumo natural se estiver sem ataques.

A semelhança só é possível se imagem estiver saudável, isto é, as virtudes só podem ser expressas com uma mente (inteligência-coração) unificada e um livre-arbítrio sem entraves, isto é, sem vícios graves, sejam vícios por coisas diretamente destrutivas ou por prazeres e distrações. A Virtude não está em nós mesmos, mas em Deus. Ela pode se expressar através de nós se formos "veículos" adequados para isso, se o "cano" (nossa alma) estiver firme e sem rachaduras para que a água (as energias de Deus) passe. Um "cano com água abundante jorrando" é o homem santo. Ele é "corpo de Deus" porque naquele momento em que a água está nele, a água e ele são uma só coisa, ainda que composta. É por isso que a pessoa santa, quando diz que todo bem que pratica não vem dela mas de Deus, não está sendo falsamente humilde, mas expressando a mais pura verdade. Só Deus é santo, só Deus é perfeito e não há virtude em nós mesmos, mas podemos ser coparticipantes da virtude, da perfeição e da santidade divinas, conforme o próprio São Pedro nos ensina em sua 2a. epístola.

A salvação consiste precisamente na reconstrução da imagem e mais uma vez receber a semelhança; em restaurar nossa "sanidade espiritual" para a partir daí Deus poder se manifestar em nós, fazendo, assim, que sejamos Seu próprio Corpo. Nossa participação nela é nossa luta ascética diária, nossa "reforma espiritual", tornando este hoje miserável templo em habitação digna do Espírito de Deus.

---------

O texto que S. João de Damasco segura em seu ícone é:

"Antigamente, Deus, que é sem forma ou corpo, não podia ser retratado. Mas agora, quando Deus foi visto na carne conversando com os homens, faço uma figura do Deus que vejo. Não adoro a matéria. Adoro o Criador da matéria que se tornou matéria por amor de mim."

Burocrata de um reino árabe, ele foi um grande defensor dos ícones em uma época em que o próprio imperador do Império Romano era contra fazer imagens de Deus e santos.

Como a Igreja Católica voltou à Igreja Ortodoxa

Últimas notícias: 23 de setembro de 2023


O assassinato do papa Lino II ocorrido nesta manhã em Berlin chocou todo o planeta. Este Papa, que em uma geração transformou o catolicismo romano, foi morto com um único tiro disparado do revólver de um judeu fanático que acusou o Papa por seus constantes apelos por justiça aos árabes da região da Palestina.

Papa Lino II, cujo nome secular era George Zakiyah nasceu em um pobre vilarejo de língua aramaica no oeste da Síria no dia de São Jorge. 06 de maio de 1945. Embora seus pais, Youssef e Miriam fossem Ortodoxos, eles foram obrigados a criar seu filho como católico, já que naquela época este era o único meio de lhe proporcionar educação e cuidados médicos. De humilde origem campesina, George sempre demonstrou ser um excelente aluno e, com auxílio de uma bolsa de estudos, cursou Letras na Universidade de Damasco. Ao se formar, passou a estudar teologia na Universidade Gregoriana de Roma. Em 1963, aos 28 anos, foi ordenado padre, servindo diversas paróquias no Líbano, principalmente em Beirute. Em 1988 foi nomeado bispo católico de Damasco, demonstrando grande talento para a diplomacia, o que certamente influenciou em sua nomeação como Cardeal em apenas seis anos, em 1994. nessa época, tudo levava a crer que sua carreira eclesiástica chegara ao fim, e que ele se tornaria um erro bispo emérito em alguma cidade do Oriente Médio. No entanto, a morte do Papa João Paulo II levou uma igreja católica dividida e indecisa na escolha de um sucessor a eleger este jovem e desconhecido Cardeal sírio católico como Papa de Roma. Esta surpreendente escolha foi, na verdade, uma concessão. Para os tradicionalistas, eleger um bispo que não fosse europeu ou norte americano, e que fora nomeado Cardeal pelo próprio João Paulo II, parecia a escolha mais segura. Para os liberais, Dom George era uma boa opção para representar os países do Terceiro Mundo, especialmente por ser jovem e representar uma minoria. Somente o estado de Israel manifestou-se contrário à sua eleição. A surpresa foi ainda maior quando o novo papa recusou-se a adotar o nome de "João Paulo III", como todos esperavam, e assumiu o nome de Lino II em homenagem ao primeiro Papa de Roma, São Lino, que fora consagrado por São Pedro. Na verdade, esta decisão do novo Papa foi a primeira de muitas que simbolizavam uma mudança radical em relação aos séculos anteriores e um genuíno retorno às raízes da Igreja.

Isso ficava claro nos slogans utilizados pelo Papa Lino II como "Precisamos voltar ao primeiro milênio para avançar para o terceiro" e "Retroceder mil anos para avançar mil anos". Todas estas frases realmente marcaram seu, segundo suas próprias palavras, "episcopado". Tanto os tradicionalistas quanto os liberais se espantaram com o apelo do Papa para que a Igreja Católica Romana se livrasse de tudo aquilo a que ele se referia como "os erros que a Igreja acumulou durante o segundo milênio". O primeiro ato do Papa Lino neste sentido, de substituir o latim pelo inglês como língua oficial do Vaticano, chocou muitas pessoas. Ele ainda afirmou que Cristo falava aramaico – a língua materna do Papa – e não latim, e que se Ele retornasse hoje não falaria uma língua morta. Mas isso não foi nada comparado a seu ato seguinte – permitir a ordenação de homens casados ao presbitério. Pela primeira vez em 900 anos a Igreja permitia que padres casados celebrassem a missa. Mas a terceira resolução do Papa chocou ainda mais os tradicionalistas. Ao admitir que seus predecessores estavam afogados em dogmatismo, o Papa Lino afirmou que, como Papa, ele não tinha direito de se manifestar a respeito do uso de certos métodos contraceptivos e afirmou, ainda, esta não era uma questão dogmática, mas sim pastoral, e que com relação a esta questão os católicos casados deveriam agir segundo sua consciência e seguindo os conselhos de seus padres confessores. Ele ainda afirmou que, em certos casos, não haveria alternativa à utilização de métodos contraceptivos.

Embora tais ações tenham causado grande comoção, também receberam vasto apoio popular. E foi em meio a este clima que a quarta ação do Papa, um retorno à espiritualidade e à teologia Trinitária tradicional, e a proscrição do "filioque" – que foi removido definitivamente do Credo recitado na Igreja Católica Romana – passou praticamente despercebida, exceto pela Igreja Ortodoxa. Porém, um único ato foi responsável pela extraordinária renovação espiritual ocorrida na Igreja Católica nas últimas duas décadas: a mudança mais profunda em todo o radical episcopado do Papa Lino II foi a compreensão de que muito daquilo que era anteriormente considerado como "espiritualidade" não passou, na verdade, de fraude espiritual – uma das conseqüências foi a "descanonização" de vários "santos" católicos populares.

Com tudo isso, em fevereiro de 2002 tínhamos a impressão de que haveria um cisma na Igreja entre tradicionalistas e liberais. Porém, o Papa acalmou a todos quando, na primavera de 2002, ele declarou sua oposição à ordenação de "sacerdotisas", à cremação, à alteração do cálculo da data da Páscoa, reafirmou a condenação à maçonaria e reintegrou ao calendário universal vários santos que foram anteriormente cassados durante o Concílio Vaticano II, como: São Jorge, Santa Catarina, Santa Bárbara e São Cristóvão. Os tradicionalistas ficaram tão felizes com tais ações que estavam praticamente prontos para perdoar o Papa por suas ações anteriores e aparentemente liberais.

Mas tais ações marcariam todo o episcopado do Papa Lino. Em 2003 ele abdicou de sua posição como líder político e chefe de estado e mudou-se do Vaticano, que foi abolido como Estado e entregue à cidade de Roma como "Museu da Renascença", um ato que horrorizou os tradicionalistas e encantou os liberais. Mas quando, naquele mesmo ano, o Papa promoveu uma renovação do monasticismo e conclamou aos católicos de todo o mundo para que buscassem uma vida em oração e voltassem a confessar-se e a jejuar regularmente – práticas que estavam praticamente abandonadas – a reação foi exatamente a oposta, especialmente quando ele restaurou os jejuns da Quaresma, do Advento e o jejum Eucarístico.

Mas sem dúvida o ápice do episcopado do Papa Lino foi a convocação do Primeiro Concílio de Roma, ao qual foram convidados não somente o episcopado católico, mas também todo o episcopado Ortodoxo, que recebeu direito de voto, e no qual os Patriarcas Ortodoxos foram recebidos como seus pares. Foi neste concílio, ocorrido em 2010, que o Papa Lino, em um grande ato de humildade, condenou o dogma da infalibilidade papal e rejeitou os dogmas da Imaculada Conceição e da Assunção. Suas reformas litúrgicas, que devolveram práticas da Igreja primitiva ao catolicismo incluíam a obrigatoriedade dos padres de ministrar a Crisma concomitantemente ao Batismo, ministrar a Eucaristia nas duas espécies, ministrar a Eucaristia a crianças, que os padres voltassem a celebrar de voltados para o altar e a rejeição de diversas inovações litúrgicas medievais – incluindo até mesmo a condenação da arquitetura gótica como uma "aberração medieval". Tais práticas chamaram a atenção, mas sem dúvida o ato mais surpreendente do Concílio foi o retorno do catolicismo romano à colegialidade da Igreja e a total rejeição daquilo que o Papa Lino chamava de "papismo". E a nomeação de seis Patriarcas para a América do Norte, América Latina e Caribe, África, Australásia, China e Índia, com autoridade absoluta sobre os fiéis de rito latino nestas jurisdições foi certamente a maior reforma dentro da Igreja desde as reformas do Papa Hildebrando no século XI, que estabeleceram o celibato compulsório para o clero e afirmou o autoritarismo papal. Hoje o Papa de Roma é somente uma figura de respeito entre os Bispos Metropolitas da Europa Ocidental, e em outros continentes o episcopado local hoje elege seus próprios patriarcas, de modo completamente independente de Roma.

Na esfera ecumênica a política do Papa Lino foi recebida com entusiasmo por Protestantes e Ortodoxos. Os primeiros aprovaram a condenação do Papa dos "grandes erros" da Idade Média, como as indulgências e a cassação de vários "santos" conhecidos por perseguirem Protestantes e outros dissidentes da Igreja. E, como era de se esperar devido a seu histórico, o Papa Lino buscou ainda mais aproximar o catolicismo da Igreja Ortodoxa, a qual ele se referia como "a fonte da verdadeira tradição católica". a cassação de "santos políticos" ou assassinos como Carlos Magno, Josafá Kuntsevic de Polotsk, André Bobola ou Stepinac de Zagreb foi muito bem recebida, assim como a dissolução das igrejas uniatas, às quais o papa apelou para que retornassem às suas igrejas-mãe na Ortodoxia.

Sua condenação do "filioque" como um "erro espiritual gravíssimo" que levou a uma "deformação espiritual do catolicismo", e condenação do Escolasticismo e sua teologia como "mera filosofia" e a cassação de filósofos escolásticos, juntamente com seu clamor para que a Igreja retomasse os "valores da teologia patrística" foram igualmente bem recebidos. Mas talvez, acima de tudo, sua categórica condenação das Cruzadas como um "ato abominável de banditismo", bem como a condenação das perseguições perpetradas por católicos na Áustria, Polônia e Croácia contra os Ortodoxos durante o século XX e a responsabilidade – direta e indireta – do Vaticano pelo assassinato em massa de Ortodoxos nas duas Grandes Guerras Mundiais foi o que fez do Papa Lino verdadeiramente popular entre os fiéis Ortodoxos. Ninguém irá esquecer o arrependimento que o Papa demonstrou na sua visita à Sérvios, bem como a inclusão dos Novos Mártires sérvios, assassinados por "católicos fanáticos", um ato que despertou a ira do governo linha-dura da Croácia em 2012. Por isso não foi surpresa alguma a inclusão no ano seguinte de diversos santos Ortodoxos no calendário romano, incluindo os novos mártires da Rússia e da Grécia.

Embora as relações com o mundo muçulmano tenham melhorado após a condenação das Cruzadas feita pelo Papa sírio, houve pouca mudança nas relações de seu episcopado com outras religiões – e no caso do judaísmo, a situação chegou até mesmo a piorar, já que o Papa sempre foi um defensor da criação de um estado árabe na Palestina, uma posição que levou a seu assassinato esta manhã em Berlim por um extremista judeu.

Certamente é difícil prever o que irá acontecer agora com a Igreja Católica. E é impossível imaginar um substituto na Europa Ocidental que esteja à altura do Papa que condenou os "erros do catolicismo" e clamou os católicos "a retornarem à Igreja", e que continuamente referia a si próprio como "apenas um bispo de Roma". Desde que o Papa Lino aboliu o cardinalato, a tarefa de escolher um novo Papa recai sobre os Metropolitas da Europa Ocidental. Mas será que este homem, que reescreveu a história do cristianismo ocidental, poderá ser substituído? A questão permanece em aberto, a menos que seja decidido que não haja necessidade de substituí-lo...

Artigo traduzido e adaptado por Ricardo Williams, publicado originalmente no site Orthodox England .

--------------------------------

Atenção: todos os direitos desta tradução estão reservados a seu autor. Este texto não pode ser reproduzido integral ou parcialmente sem a prévia e expressa autorização do tradutor.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Eu vim para cantar ópera

"O que você veio fazer aqui?"

Este vídeo é sobre Paul Potts. Gordinho, feio, inseguro e tímido, com 36 anos era um mero gerente de uma loja de venda de celulares. Na infância, era vítima de abusos por parte dos colegas mais fortes. Seu sonho sempre foi cantar ópera e chegou a participar de algumas montagens amadoras nas quais não recebeu nada. Interrompeu sua "carreira" por motivo de doença, quando então tornou-se gerente com muito desgosto, pois achou que ficaria neste trabalho para o resto da vida, sem jamais realizar seu sonho. Com um dinheiro extra que ganhara em um concurso fez um curso de canto na Itália, mas nada mais parecia acontecer.

Até que ele se inscreveu no programa de calouros da Inglaterra "Britain's got talent". Veja a cara dos jurados quando a jurada pergunta "O que você veio fazer aqui?" e ele responde "Eu vim para cantar ópera."


http://www.youtube.com/watch?v=RsYSFcJvQJo&feature=related

e aqui a final do programa:

http://www.youtube.com/watch?v=hIOd69PBMQ8&feature=related

----


E você? O que você veio fazer no mundo?

------

É *isso* que falta no mundo, no Brasil. Beleza. Verdadeira Beleza que é capaz de mover cada um individualmente e as multidões em direção às coisas boas. Paul Potts é a prova que ser belo está a milhares de quilômetros luz de distância da mera "atração" que parece ser o critério predominante hoje.

É como assistir uma explosão de luz, uma barragem que se quebra inundando tudo. A Beleza, exposta através da voz dele, reina inquestionada. Falta-nos hoje, precisamente isso a humildade reverencial perante o Belo, a busca pele Beleza. Impinge-nos o conformismo com algo simplesmente porque foi produzido no país em que nascemos (às vezes nem isso, apenas porque é da região que nascemos ou feito por pessoas da mesma cor de pele ou classe social), com absoluta indiferença à pergunta: é Belo? É bonito?

Vivemos em uma época de música feia, imagens feias e tudo isso não pode deixar de estar relacionado com uma ética feia, uma moral feia. Já diziam os antigos que o Bom, o Justo, e o Belo são todos expressões diferentes de uma só coisa. Perder o senso de beleza é perder o senso de proporções, que nos faz perder o senso de justiça e do que é Bom e Mal.

Entre nós, da Igreja Ortodoxa, por influência da cultura russa, é comum dizer que "A Beleza salvará o mundo". Em momentos como esse é que eu tenho a certeza de que esta afirmação é uma verdade objetiva e concreta. A Beleza é a verdade última do universo. Deus nos fez a todos, e fez a tudo para sermos belos. Não belos como uma mulher ou homem atraentes. Mas grandiloquentemente belos como Paul Potts e tantos outros por aí.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A Mentalidade da Igreja Ortodoxa

A Mentalidade


da Igreja Ortodoxa

Metropolita de Nafpaktos, Arquimandrita Hierotheos

Trecho do livro de mesmo nome

Tradução e resumo: Fabio Lins

Origem e Revelação da Igreja


Através dos séculos surgiram muitos ensinamentos heréticos que distorceram a verdade revelada e que foram confrontadas pelos Pais “com a funda do Espírito”, isto é com o poder do Espírito Santo. E assim é porque os santos Pais eram os portadores da pura Tradição da Igreja.

Entre estas heresias estavam as do arianismo, dos pneumatôcos que lutavam contra o espírito, dos nestorianos, monofisitas, monotelistas, iconoclastas, etc. Todas estas heresias referem-se principalmente à Pessoa do Cristo, mas também à do Espírito Santo, e, naturalmente, perturbam os fundamentos da salvação do homem. Pois se Cristo não é consubstancial com o Pai, mas sua primeira criatura e se o Espírito Santo não é verdadeiro Deus, a salvação do homem fica em dúvida, a possibilidade de deificação é abortada.

Posteriormente, durante o século quatorze, uma outra heresia surgiu, que foi expressa por Barlaam e baseada no racionalismo. Se os ensinos de Barlaam houvessem prevalecido, o método do caminho ortodoxo para a deificação, que é o hesicasmo, teria acabado realmente em agnosticismo.

A questão que levantamos é se existem ainda hoje heresias. A resposta não é difícil de encontrar porque todos somos testemunhas do fato de que existem hereges nos dias de hoje, descendentes dos grandes heréticos, e de que existem ensinamentos heréticos sendo divulgados, talvez não deliberadamente, por pessoas que crêem, entre outras coisas, que realmente são membros da Igreja de Cristo. E realmente todos nós, em nossa ignorância e falta de conhecimento, podemos cultivar algumas visões erradas a respeito de Deus e da salvação, mas devemos lutar para nunca nos tornarmos heresiarcas ou descendentes dos grandes heréticos que apareceram na história da Igreja.

Além disso, todos os hereges foram membros da Igreja por um tempo, mesmo no clero e eram ativos nela. A profecia do apóstolo Paulo se aplica aqui: “e que dentre vós mesmos se levantarão homens, falando coisas perversas para atrair os discípulos após si.” (At 20,30).

Todas as heresias distorcem a eclesiologia também. Já que a Igreja é o Corpo de Cristo, toda alteração no ensino sobre o Cristo, sobre o Espírito Santo, sobre o modo da salvação do homem também produz conseqüências eclesiológicas.

De fato, pode ser dito que se há uma grande heresia hoje em dia, é a assim chamada heresia eclesiológica. E tal fato deve ser confrontado pelos Pastores da Igreja. Existe uma grande confusão sobre o que a Igreja é e quem são seus verdadeiros membros. Confundimos ou identificamos a Igreja com outras tradições humanas, pensamos que a Igreja está fragmentada ou separada, e ainda mais, ignoramos o modo de salvação da Igreja. Há grandes confusões sobre este grande tema.

Nos capítulos que seguem, buscaremos examinar o assunto da Igreja sob diferentes ângulos e iremos tentar compreender o que os santos Pais dizem sobre a Igreja.

Penso que assim encontraremos auxílio para adquirir a genuína mentalidade da Igreja Ortodoxa, o que é essencial para nossa salvação.

Muitos de nós pensam que a Igreja foi criada no dia do Pentecostes, quer dizer, quando o Espírito Santo desceu nos corações dos Apóstolos. E, claro, podemos dizer que o Pentecostes é o dia de aniversário da Igreja do ponto de vista de que foi aí que a Igreja tornou-se o Corpo de Cristo. Ela adquiriu substância. Entretanto, o início e existência da Igreja encontram-se em tempo anterior ao do Pentecostes.

O professor John Karmirist afirma que existem três fases no surgimento da Igreja. A primeira é a criação dos anjos e dos homens, a segunda é a vida de Adão no Paraíso, mas também o período do Antigo Testamento e a terceira fase é a encarnação de Cristo. De fato, a revelação plena da Igreja ocorrerá na Segunda Vinda de Cristo.

Vamos olhar mais analiticamente tais períodos da Igreja, pois assim poderemos concatenar com o mistério da Igreja e obter uma consciência mais aprofundada de nosso ser e abrangência.

O início da Igreja

É um ensinamento dos santos Pais que com a criação dos anjos ocorre o surgimento da primeira Igreja. E pode ser visto nos escritos dos Pais que os anjos também são membros da Igreja. Além disso, Deus-Pai é o “Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis”. Entre as invisíveis estão enumerados os anjos, que cantam em louvor de Deus. No livro de Jó este testemunho é ratificado: “quando as estrelas nasceram, todos os anjos à alta voz cantaram em louvor de Mim” (Jô 38,7). Assim, antes da criação do mundo sensível haviam anjos, que cantavam em louvor de Deus por causa da criação. E, para asseverá-lo, isto significa que os anjos foram os primeiros a serem criados por Deus.

(...)

A Igreja no Antigo Testamento

Adão e Eva viviam uma vida Angélica no Paraíso. Estavam no estado de iluminação do nous, o que é o primeiro grau da visão de Deus. Estavam em comunhão com Deus.

(...)

Através da queda de Adão, a comunhão do homem com Deus, consigo mesmo e com toda criação, foi quebrada.(...)

No entanto, a despeito da queda de Adão, a Igreja não desapareceu completamente.(...)

Sabemos, a partir dos ensinos dos santos, que todas as manifestações de Deus no Antigo Testamento são manifestações da Palavra, da Segunda Pessoa da Santa Trindade. A diferença entres as manifestações no Antigo Testamento e no Novo é que no primeiro manifesta-se a Palavra não-encarnado, enquanto no segundo vemos as manifestações da Palavra Encarnado.(...)

Assim, a Igreja existia no Antigo Testamento também, a despeito da queda do homem. Os membros desta Igreja eram os justos e os profetas, que tinham a Graça de Deus.(...)

A Igreja no Novo Testamento

Com a Encarnação de Cristo, vemos a manifestação da Igreja. A Igreja torna-se o Corpo de Cristo e adquire sua Cabeça, que é o Cristo.(...)

Pela encarnação de Cristo, a natureza humana que Cristo assumiu foi feita divina, e deste modo, os cristãos, os membros da Igreja, são plenamente membros do Corpo de Cristo.

(...)

Dissemos anteriormente que no Antigo Testamento os santos profetas conseguiram a deificação. Pois de acordo com o ensino dos santos Pais, e de S. Gregório Palamas também, a visão de Deus, que é a visão da Luz Incriada, se dá através da deificação do homem. O homem é deificado e, assim, feito digno de ver a luz incriada de Deus. O homem não consegue ver Deus por suas próprias forças. Na Igreja, cantamos “na Tua luz, vemos a luz”. Assim, a visão de Deus vem de dentro, não de fora, isto é, ela se dá através da deificação do homem. Não se trata de ver coisas e sinais exteriores. Este é um ponto crucial na teologia patrística. (...)

Entretanto, a deificação dos profetas fora temporária, posto que a morte não havia ainda sido abolida e é por isto que foram levados ao Hades e a visão estava fora do Corpo do homem-Deus Cristo. Tal diferença pode ser observada na experiência dos Apóstolos na Transfiguração de Cristo e na experiência que eles mesmos tiveram no dia do Pentecostes.

Na Transfiguração os discípulos viram a glória incriada da Santa Trindade na natureza humana do Logos. Para que pudessem participar desta grande experiência, eles tiveram que ser transfigurados anteriormente: “eles foram mudados, e eles viram a mudança”. Esta mudança dos discípulos é idêntica com a deificação. Através da deificação eles alcançaram a visão de Deus, e, portanto, no ensino patrístico a visão de Deus está conectada com a deificação do homem. Entretanto, embora a visão da glória incriada de Deus tenha vindo de dentro, isto é, através da deificação, ainda assim a Luz que vertia do Divino Corpo humano de Cristo era externa aos santos apóstolos, já que eles não haviam ainda se tornado membros do Corpo de Cristo.

No Pentecostes, recebemos este grande dom. Os discípulos viram a Glória de Deus internamente, isto é, através da deificação, mas também desde dentro do Divino Corpo humano de Cristo, já que com a vinda do Espírito Santo eles haviam tornado-se membros do Corpo de Cristo. No Pentecostes, o Corpo de Cristo não era externo aos Apóstolos como era na Transfiguração, mas interno, no sentido de que os Discípulos tinham tornado-se o Corpo de Cristo e como tais, eram merecedores desta experiência.

Com a Encarnação de Cristo, a Igreja se tornou um Corpo.(...)


A perpetuidade da Igreja

Pela Sua Encarnação, Cristo assumiu a natureza humana, e, realmente, a natureza humana foi unida com a natureza divina imutavelmente, sem confusão, inseparavelmente, sem alteração e indivisivelmente. Jamais se separarão. Permanecem unidas para sempre.

Assim, a Igreja existirá também depois da Segunda Vinda de Cristo e poderemos falar da perfeita manifestação da Igreja. Isto é dito do ponto de vista de que os santos desde já saboreiam “as últimas coisas”, porque, como dissemos no início, as últimas coisas na Igreja não estão isoladas das primeiras e das imediatas. Vivendo na Igreja, alcançamos o estado de Adão no Paraíso antes da Queda, e ascendemos ainda mais alto, porque atingimos comunhão e unidade com Cristo, unidos ao seu Corpo Divino-Humano, tendo tornardo-nos membros do Seu Corpo.

Os santos, desde já, gozam a Glória de Deus e, por isso, S. Simeão, o Novo Teólogo, diz que aqueles a quem foi concedida a visão da Luz incriada de Deus, não estão esperando a Segunda Vinda, porque já estão experienciando o Reino de Deus.

Além disso, o Reino de Deus não é algo criado, nem é uma realidade terrestre, mas como S. Gregório Palamas ensina, a participação no Reino de Deus se identifica e conecta com a visão da Luz incriada.

Entretanto, haverá um contínuo aperfeiçoamento desta participação na glória de Deus. Isto é importante porque se a vida futura fosse uma condição estacionária, então não haveria plenitude. S. Gregório do Sinai diz caracteristicamente: “É dito que na era futura, os anjos e santos crescem perpetuamente nos dons da graça e nunca satisfazem seu desejo por maiores bênçãos. Nenhum lapso ou distanciamento da virtude para o vício ocorre naquela vida”.

E São Gregório Palamás, referindo-se a este ponto, fala do desenvolvimento contínuo na deificação, do aperfeiçoamento contínuo, perguntando: “Os santos não progridem infinitamente na visão de Deus na era por vir?”, ele mesmo responde: “Em tudo é claramente rumo ao infinito”. De fato, ele utiliza o caso do anjo que, de acordo com S. Dionísio, o Aeropagita, torna-se cada vez mais receptivo “a mais clara iluminação”. Deus é infinito e portanto concede Sua graça abundantemente e plenamente.São Gregório Palamas pergunta: “E que caminho resta aos filhos da era por vir senão avançar nisto para o infinito, aceitos de graça em graça e pacientemente realizando sua incansável ascensão?” Tal ocorrerá porque, de acordo com o mesmo santo, “a graça anterior lhes dá força para participar em coisas ainda maiores”.

É claro que, dizendo tais coisas, devemos enfatizar que não se trata de uma questão de “restauração” de todas as coisas, um ensino que não foi adotado pela Igreja, mas de desenvolvimento e aperfeiçoamento dos santos, daqueles que durante suas vidas participaram da energia purificante, iluminadora e deificante de Deus. Para aqueles homens que não participaram nem mesmo na graça purificadora, isto é, não entraram no estágio de arrependimento, este bom desenvolvimento não terá efeito. Além disso, a passagem que mencionamos fala de santos que alcançaram a graça de Deus, e portanto esta graça o está fortalecendo para participarem de coisas ainda maiores. Portanto os ofícios memoriais que a Igreja realiza por aqueles que morreram também possuem este objetivo. Eles auxiliam a pessoa em seu aperfeiçoamento, porque, de acordo com o ensino dos santos, “esta é o perfeito eterno aperfeiçoamento dos perfeitos”.

Neste sentido podemos dizer que depois da Segunda Vinda do Cristo, teremos uma mais completa manifestação da glória de Deus. E é nesta perspectiva que devemos interpretar o ensino dos santos de que desde já temos como que um certo gosto das boas coisas do Reino de Deus.

Conclusão

Depois de tudo que foi relatado, devemos terminar com algumas poucas conclusões, sem, naturalmente, exaurir este grande tema.

a) Apenas em Cristo há salvação. Já que os santos do Velho Testamento viram a Palavra não-encarnada e os santos do Novo Testamento viram e vêem a Palavra Encarnada e têm uma comunhão bem próxima com Ele, isto significa que a salvação do homem se dá apenas através de Cristo. E, naturalmente, já que Cristo é a Segunda Pessoa da Santa Trindade e a salvação é uma ação comum do Deus Triuno, isto significa que somos salvos quando estamos em comunhão a Santa Trindade, quando a graça do Deus Trinitário entra no nosso ser, quando “a graça de nosso Senhor Jesus Cristo e o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo” estão em nós.

b) A Igreja não é uma organização humana, mas um organismo Divino-Humano. A fonte da Igreja é o próprio Deus. Ela não é uma invenção do homem, nem é fruto ou resultado das necessidades sociais do homem, mas o único lugar para a salvação do homem. Por outra, cria-se a impressão de que o homem fez a Igreja para poder sobreviver às condições trágicas e difíceis da vida. Mas como explicamos anteriormente, a fonte da Igreja é o próprio Deus, e a salvação do homem se dá nela. Clemente de Alexandria observa: “porque assim como um trabalho de sua mente é chamado mundo, também a salvação do honem é de Sua vontade e esta é chamada Igreja”. E isto significa que a Igreja nunca irá cessar de existir, a despeito de quão difíceis e desfavoráveis sejam as circunstâncias.

c) Na Igreja, todos os problemas estão resolvidos. Não falamos de um Cristianismo abstrato que associamos a uma ideologia, mas da Igreja que é comunhão entre Deus e o ser humano, de anjos e homens, do terrestre e do celestial, do homem e do mundo. A Igreja é “o encontro do céu e a terra”. Paz, justiça, etc., não são meras convenções sociais, mas dons que são dados na Igreja. Paz assim como justiça e todas as outras virtudes, como o amor, são experiências da Igreja. Na Igreja experimentamos a paz real, justiça e amor, que são essencialmente as mesmas energias de Deus.

d) A Igreja é o Corpo de Cristo, que possui o Cristo como sua cabeça e os membros da Igreja como os membros do Corpo de Cristo. Existem membros da Igreja de todas as idades e existirão até o fim dos tempos. E quando não houverem mais membros da Igreja, o fim do mundo virá.(...)


“Definição” e características da Igreja

(...)

A Igreja enquanto Mistério

Primeiro devemos sublinhar que a Igreja é um mistério. Ligada ao Cristo e sendo seu Corpo, não é uma organização humana, mas um Organismo Divino-Humano. Ao mesmo tempo a Igreja não é, como normalmente se diz, o Corpo Místico de Cristo, porque os cristãos, que são os membros da Igreja, são os membros reais do Corpo de Cristo. Então não se deve falar de um corpo místico, abstrato e apreendido espiritualmente, mas do Corpo real de Cristo.

O fato de a Igreja ser o Corpo de Cristo não implica que ela se identifique ontologicamente com Cristo, a Segunda Pessoa da Santa Trindade. Nem deve a natureza divina em Cristo ser identificada com a natureza humana, porque cada natureza retém suas propriedades. Assim, também a Igreja não deve ser identificada ontologicamente com o seu Cabeça, embora esteja ligada ao Cristo.

Em todo caso, mesmo a Igreja não sendo o Corpo místico, mas real de Cristo, é ainda um mistério e o que nela ocorre é mistério. Isto implica que não é possível investigar ou nos preocuparmos com a Igreja através do raciocínio e dos sentidos, nem podemos interpreta-la por algumas características exteriores.

Diz-se normalmente que a Igreja possui sete Sacramentos. Sem negar tal fato, eu gostaria de enfatizar que isto é uma afirmação a posteriori e que, de qualquer forma, existem variações na história do número dos Sacramentos. Os santos Pais pensam, principalmente, em termos de três sacramentos, o do Batismo, Crisma e Eucaristia. O sacramento do Batismo é chamado de Sacramento introdutório, porque introduz-nos na nova vida, como Corpo de Cristo. O Santo Crisma é o assim-chamado Batismo do Espírito, nos dando a possibilidade da graça do Batismo trabalhar em nós. E o Sacramento da divina Eucaristia deifica a pessoa através da recepção do Corpo e Sangue de Cristo. Todos os outros sacramentos (ordenação, casamento, unção, confissão) estão conectados com estes três, pressupondo o Batismo e sendo completados na Divina Eucaristia.

(...)

“Definição” de Igreja

(...)

Em tempos anteriores, várias definições do que a Igreja é foram formuladas por alguns teólogos e tais definições seguem todas mais ou menos a seguinte linha: a Igreja compõe-se de todas as pessoas que crêem em Cristo, que confessam que Jesus Cristo é o Cabeça, que Ele é seu Deus e Senhor, que possuem a mesma fé e confissão, que são santificadas através dos santos Sacramentos, que estão sendo guiadas para a salvação por pastores que possuem sucessão apostólica contínua, etc.

Tais definições foram influenciadas por livros ocidentais sobre a Igreja, pois hoje sabe-se que não é possível dar uma definição do que é a Igreja, já que nem mesmo os santos Pais o fazem. Portanto, observamos que no ensino patrístico não existe definição de Igreja. E enfatizo que teólogos mais recentes deixam claro que as definições de Igreja são derivadas da teologia escolástica do Ocidente.

Na santa Escritura e nos escritos patrísticos o que é dito na maior parte das vezes é que a Igreja é o Corpo de Cristo e uma comunhão de deificação. Que a Igreja é o Corpo de Cristo é visto nas Santas Escrituras, especialmente nas epístolas do Apóstolo Paulo. Nos ensinos de São Gregório Palamas, a expressão “comunhão de deificação” é utilizada porque demonstra qual é o propósito da Igreja. O propósito da Igreja é levar o homem à deificação. Quando afastamos a Igreja deste propósito, a transformamos em um tipo de ideologia, uma organização religiosa e humana. E sabemos muito bem que há uma grande diferença, e eu diria caótica, entre ideologia e Igreja. A ideologia possui idéias, enquanto a Igreja possui vida, uma vida que é capaz de derrotar a morte.

(...) E pode ser dito com certeza que [a imagem da Igreja como Corpo de Cristo] é uma revelação de Deus para o apóstolo Paulo. Enquanto Saulo estava viajando para Damasco para prender os cristãos, Cristo surgiu para ele, e disse: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Quando Saulo perseguia os cristãos, Cristo tratou a perseguição como a Si mesmo. Foi deste modo, como de fato de muitos outros eventos, que o apóstolo Paulo veio a utilizar esta imagem.

O padre George Florovsky, um dos mais eminentes teólogos ortodoxos de nosso tempo, falando da Igreja, afirma: “É impossível começar com uma definição formal da Igreja, pois, estritamente falando, não existe nenhuma que possa alegar autoridade doutrinal. Nenhuma pode se encontrada nos Pais. Nenhuma definição nos Concílios Ecumênicos...Não se define o que é auto-evidente...Faz-se necessário sair da sala de aula e voltar para a Igreja que adora e talvez trocar o jargão da escola da teologia pela linguagem metafórica e pictórica da Escritura. A própria estrutura da Igreja é melhor adequada a ser descrita e representada do que adequadamente definida... Provavelmente mesmo esta descrição será convincente apenas para os que são da Igreja. O mistério só pode ser apreendido pela fé.”

Quase todos os teólogos contemporâneos estão dizendo que não podemos encontrar qualquer definição que exponha integralmente o conteúdo da Igreja, a não ser a de que a Igreja é o Corpo de Cristo e podemos utilizar diversas imagens para caracteriza-lo. Neste ponto, gostaria de mencionar John Karmiris e Panagiotis Trempelas. Eles confessam que não podemos definir a Igreja como os teólogos escolásticos do Ocidente fazem. E isto porque, entre outras coisas, a Igreja é a realidade em que vivemos e não um objeto que examinamos.

Falando do enorme valor da Igreja, São João Crisóstomo diz que este é depreendido dos muitos nomes que ela possui. (...)

E, S. Máximo, o Confessor, não define a Igreja, mas utiliza várias imagens. (...)

(...)

Muitas pessoas, falando da Igreja, referem-se seja a hierarquia, que é apenas o clero e particularmente os Bispos, que constituem a ordem pastoral da Igreja, ou apenas os leigos, que foram batizados em nome do Deus Trinitário. Mas tais pontos de vista são errados e expressam pensamentos Ocidentais sobre a Igreja. Penso que seria útil alargar a análise deste ponto para clarificar alguns elementos essenciais.

Como dito anteriormente, a Igreja é o Corpo divino-humano de Cristo. Os cristãos são literalmente membros do Seu Corpo. Portanto, a Igreja não poderia nunca ser uma organização ou instituição abstrata., mas sim a unidade dos cristãos com Cristo. Mas os cristãos estão divididos em dois grupos, clero e leigos. A distinção não trata de privilégios no que concerne à salvação, mas ao que os cristãos abençoados que irão ajudar o próximo em sua deificação, isto é, pastores que irão liderar os leigos, devem representar na Igreja.

(...)

No ensino patrístico fica claro que os três graus do sacerdócio – diácono, presbítero e bispo – estão conectados com os três graus da vida espiritual, que são a purificação do coração, a iluminação do nous e a deificação. Isto significa que o sacerdócio deve ser fruto da energia purificadora, iluminante e deificadora de Deus, ou pelo menos, orientado nesta direção. Se não for nem um, nem outro, então o sacerdócio não é tomado, não há deposição nem um ministério sacerdotal satisfatório. O trabalho do clero tem duas faces. A primeira é realizar os sacramentos e a segunda é guiar o povo a viver uma vida sacramental. Mas também os leigos, para que sejam realmente membros da Igreja e pertencer ao Corpo de Cristo, devem participar, ou buscar participar, da energia purificadora, iluminante e deificadora de Deus.

Tais coisas estão sendo ditas com a compreensão de que através do Batismo somos alistados como membros da Igreja. Entretanto, se não ativarmos a graça do Batismo através de uma vida de ascese, que a Igreja possui, então não somos realmente seus membros. Podemos realizar uma distinção. Uma coisa é ser um membro em potencial da Igreja, ter aceito a possibilidade de nos tornarmos realmente membros, e uma outra coisa é ser um membro ativo. São Gregório Palamás utiliza a imagem do filho do Rei para explicar isto. O filho nasce no palácio e tem a possibilidade de se tornar o futuro rei, ascendendo ao trono. Mas se antes disso, ele morrer, ele perde esses direitos. O mesmo é verdade para o resto de nós. Por seu nascimento biológico ele tem a possibilidade de se tornar herdeiro dos reino de seu pai. Mas se morrer prematuramente ou for expulso de casa, então perde a possibilidade de herdar todas aquelas coisas boas. Cristo disse ao bispo de Sardes: “Conheço as tuas obras; tens nome de quem vive, e estás morto.”(Ap. 3:1). Naturalmente, ele pode arrepender-se e portanto é chamado a ser “vigilante” e “arrepender-se”, mas, no momento, está espiritualmente morto. Isto não significaque ele não realiza os sacramentos, mas que os realiza como um homem morto. Nikolas Kavasilas diz: “Vamos viver a vida, atraindo a santificação através dos mistérios da cabeça e do coração” atpe que estejamos ligados ao Cristo, até que sejamos membros Dele, “carne de Sua carne, ossos de Seus ossos”. Entretanto, como membros mortos não podemos saborear a vida. “Quando nos cortamos e caímos da inteireza do Santíssimo Corpo, saboreamos os santos mistérios em vão; pois a vida não passa através dos órgãos mortos e separados”.

Assim, na Igreja, alguns são membros em potencial, outros realmente, e para nos expressarmos melhor, alguns são órgãos mortos e outros vivos. Esta distinção, vivo ou morto, é encontrada em toda a tradição bíblico-patrística da Igreja. E é uma pena que não conheçamos toda esta tradição e ensinemos que todos os que recebem o Santo Batismo são membros da Igreja. Para sermos precisos, também são membros, mas que se cortaram completamente para fora da Igreja. Mas algunas órgãos mortos pode ser revividos pela operação da divina graça e com sua própria cooperação.

(...)

Nas epístolas do Apóstolo Paulo, vemos que na Igreja esxistem os glorificados, os iluminados e os indivíduos particulares. Os glorificados são os deificados, que participam da energia deificante de Deus; os iluminados são os que já possuem a oração noética mas ainda não atingiram a deificação, e os indivíduos particulares são os que foram batizados com a água, que estão em um estado de purificação e ainda não receberam o Espírito Santo. Depois destas categorias, existem também aqueles sem fé que ainda não entraram no estágio de purificação e que ainda não receberam o Batismo[1].

Com base nestas pressuposições, os Santos Padres, chamam a Igreja de uma comunhão dos Santos. Não é uma coleção de pessoas que foram um dia batizadas e estão em um estado de estagnação, mas uma comunhão de pessoas carismáticas. Assim, compreendemos que a Igreja é vida, e não um local de ideologia. Dentro desta perspectiva, S. João de Damasco, chamava a Igreja de “ordem inteiramente escolhida por Deus”, “o povo dos santos”, “o povo de Cristo”, “cordeiros de Deus, povo santo”. Neste sentido, como o Padre George Florovsky diz, a Igreja é uma comunidade sagrada que se distingue claramente do “mundo”, que ela é uma Igreja santa. “S. Paulo claramente utiliza os termos ‘Igreja’ e ‘Santos’ como coextensivos e sinônimos”.

Assim, é um erro considerarmos a Igreja como um local ideológico, religioso ou mesmo mágico. Devemos tê-la como o Corpo de Cristo e uma comunhão de deificação. Com estas pressuposições podemos experenciar na Igreja a vitória de Cristo sobre a morte. Se não morrermos a morte e o ferrão da morte, que é o pecado em nós, pelo poder e energia de Deus, se não nos transformarmos de membros mortos para membros vivos da Igreja, não iremos sentir a vitória de Cristo sobre a morte, o pecado e o demônio. E, assim, para nós, todo o trabalho da economia divina terá sido não um fato pessoal existencial, mas um mero evento histórico. Por isso a Igreja é um local de vida e não um alvo do pensamento.

As características da Igreja

a) Uma

A Igreja é uma. Não existem muitas igrejas. É uma conseqüência do fato de que a Igreja é o Corpo do Cristo Divino-humano. Cristo possui um Corpo; Ele não pode ter muitos corpos. Já que a Cabeça é uma, o Corpo também é um só.

(...)

Ao falarmos da unidade da Igreja, temos duas coisas em mente. Primeiro, é que a despeito da pluralidade dos seus membros, há um só corpo, e a segunda é que é um lugar único para a salvação do homem.

Primeiramente, devemos dizer que a Igreja é uma só a despeito do grande número de membros. Cristo expressou este fato através da imagem do rebanho e do pastor. Já que o pastor que guia a ovelha é um só, e todas as ovelhas juntas formam um rebanho, isto signifca que a unidade da Igreja não é abolida pelo grande número de fiéis, nem pelas Igrejas locais, as quais, entretanto, estão unidas e ligadas em sua fé e vida. Cada Igreja local não é uma de muitas assim chamadas Igrejas, mas a Igreja de Cristo. Também as paróquias não quebram a unidade da Igreja, porque cada paróquia é a Igreja em miniatura. É mais ou menos o mesmo que ocorre com o cordeiro, o Corpo de Cristo. Na Santa Mesa, Cristo é “quebrado mas não dividido”, e, portanto, quando comungamos dos Mistérios Ilibadoss, não comemos uma parte de Cristo, mas o Cristo inteiro, pois Cristo é “partilhado inseparavelmente em partes”. Assim, a despeito da existência de muitas igrejas locais e paróquias, a unidade da Igreja não é rompida. A ruptura se dá através da heresia. Então, realmente não há uma divisão da Igreja, mas uma separação de um grupo que se retira dela. A unidade da Igreja não é perdida, mas os membros heréticos se separam desta unidade e não mais pertencem ao Corpo de Cristo uno.

S. Máximo Confessor diz que, enquanto os Cristãos se dividem em categorias de acordo com idade, raça, nacionalidades, línguas, lugares e modos de vida, estudos, e características e realmente “tendo sido dividos uns dos outros, e muitos tendo nascido na Igreja diferentes e renascidos e recriados através dela pelo Espírito”, ainda assim “ela dá igualmente a todos, e os favorece com uma forma e designação, ser de Cristo e levar Seu nome”. E Basílio, o Grande, diz característicamente: “A Igreja de Cristo é uma, mesmo que endereçada de lugares diferentes”. Estas passagens e especialmente a vida da Igreja acabam com toda tendência nacionalista. É claro que não podemos acabar com as nações e terras natais, mas podemos nos livrar do nacionalismo, o qual é uma heresia e um grande perigo para a Igreja de Cristo.

b) Santa

Já que a Igreja é o Corpo de Cristo , é santa. Foi santificada e purificada por Cristo, que a assumiu e fez dela Seu Corpo.

Referindo-se à Santidade da Igreja, o Apóstolo Paulo diz: “Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, a fim de a santificar, tendo-a purificado com a lavagem da água, pela palavra, para apresentá-la a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e irrepreensível.” (Ef. 5, 25-27).

A Igreja no Antigo Testamento assemelhava-se a uma prostituta, e Cristo a santificou, fazendo-a virgem. São João Crisóstomo analisa esta verdade graficamente: “Pois o milagre do noivo é que tomou uma prostituta e a fez virgem”. E então, ele escreve que no âmbito humano biológico, o casamento destrói a virgindade, enquanto “com Deus, o casamento restora a virgindade”. Analisando, este grande mistério ainda mais profundamente, Crisóstomo diz: “Deus desejou uma prostituta... sim, uma prostituta: falo de nossa natureza”. Deus deseja a prostituta “para fazer dela virgem”. E, de fato, Ele não envia nenhum anjo, querubim ou serafim, ou qualquer um dos seus servos, “Ele apresenta a Si mesmo, o amante”. E como a prostituta não queria elevar-se, Ele mesmo desce. Ele entra em sua cabana. A vê bêbada, coberta de feridas, enfurecida, empesteada de demônios. Ele se aproxima dela. Ela foge. Ele a convida dizendo: “Eu sou um curador”. Ele imita os costumes dela. Então, “Ele a toma, a adapta a Si mesmo”, quer dizer, se torna noivo dela, lhe dá o anel, isto é o Espírito Santo.

Então Crisóstomo apresenta o diálogo entre Cristo e a ex-prostituta. Cristo disse a ela: “Já que fostes criada no Paraíso, como caístes de lá?” Ela responde que o demônio a expulso de lá. E Cristo continua: “Fostes criada no Paraíso e ele te expulsou. Contemple, Eu a crio em Mim mesmo, Eu a gesto! Já não possuis um corpo e não tens nada a temer do demônio”. A prostituta responde: “Mas sou uma pecadora e suja!” E Cristo diz: “Não se preocupe; sou um curador. Conheço minhas ferramentas, sei que eras de barro e estava quebrada. Eu a reconstruirei com o banho do renascimento e consigná-la com o fogo.”

Citei estas palavras de São João Crisóstomo, porque elas mostram o que a Igreja é e que ela foi santificada por Cristo. Também mostram que a Igreja é santa não através de seus membros, mas porque seu Cabeça, Cristo, é Santo. A santidade dos cristãos emana da santidade do Cristo, em realidade coparticipantes da energia deificadora de Cristo.

Então, já que a Igreja é santa, então também seu trabalho é santificar. O objetivo da Igreja é santificar seus membros, guiá-los para a iluminação e a deificação. O trabalho santificante da Igreja é realizado através dos Sacramentos e da vida ascética, quer dizer através do seu método de cura na integralidade. É claro que não participar na energia deificante de Deus é u ma doença. Não é uma questão psicológica, mas um fato espiritual. Por isso, todos nós que estamos doentes fazemos uso do verdadeiro método de cura e participamos da energia purificadora e iluminante de Deus. E deste modo, também nós somos santificados e somos verdadeiros membros do Corpo de Cristo. Deixamos de estar mortos, e nos tornamos membros vivos.

c) Católica

O termo “católico” originou-se com Aristóteles e significa “completo”, “inteiro”, “o nome comum em contraste com o de cada um”. Podemos também dizer que o termo “católico” identifica-se e liga-se com o que é Ortodoxo.

Quando dizemos que a Igreja é católica, referimo-nos a três aspectos em particular. Primeiro, que ela existe no mundo inteiro, segundo que possui a verdade completa sobre Deus, o homem e a salvação, e terceiro que a vida que Igreja possui é a mesma para todos os Cristãos, para todos os seus membros.

(...)

Em segundo lugar é chamada católica porque possui toda a Verdade, conforme foi revelada no dia do Pentecostes. Aqui, devemos destacar que a teologia escolástica do Ocidente ensina que através das eras adquirimos um maior aprofundamento dos dogmas da fé e que estes estão ainda se desenvolvendo cada vez mais. Este não é um ensinamento ortodoxo. Acreditamos que no dia do Pentecostes, os Apóstolos alcançaram a deificação, experimentaram a Revelação e assim atingiram toda a Verdade. Aqueles, ao longo dos tempos, que atingem a deificação partilham da mesma experiência de revelação. E esta verdade é formulada e expressa em todas as épocas, enquanto as heresias surgem. Assim, não nos desenvolvemos ou aprofundamos na fé, mas, por um lado, buscamos viver a fé, e por outro, buscamos preservar a expressão da fé em termos que irão protegê-la de distorções e más-ações.

Santo Irineu, bispo de Lyon, escreve: “A Igreja, tendo recebido esta mensagem e esta fé, embora espalhada pelo mundo, cuidadosamente a mantém, como se morasse em uma só casa: e mesmo assim confia em todos, já que possui um e o mesmo coração”.

Neste sentido, a catolicidade está ligada com a ortodoxia. A Ortodoxia preserva a verdade plena, tanto revelada quanto dogmática e enquanto experiência, enquanto a heresia quebra a catolicidade da verdade, porque escolhe um aspecto da verdade em detrimento de outro. Por exemplo, Arios não negou que o Anjo do Senhor aparece no Antigo Testamento, mas negou a divindade da Palavra. Os monofisitas não negaram a natureza divina, mas a superenfatizaram ao custo da natureza humana, motivo pelo qual acabaram com a possibilidade da salvação. Isto é observado em todas as heresias. Eles escolhem uma parte da verdade, a separam de sua catolicidade e a superenfatizam ao custo do todo. Por isto, a Igreja Católica-Ortodoxa ensina, como S. Cirilio de Jerusalém diz, “De um modo completo e católico, todos os dogmas que devem ser conhecidos pelo homem”.

Igualmente, a Igreja é chamada católica porque a vida que ela oferece pertence a todos; quer dizer, todos os cristãos têm a possibilidade de atingir a deificação, a despeito do seu estilo de vida, sua ocupação e lugar onde moram. A pessoa ortodoxa é uma que acredita em caminho católico, uma pessoa virtuosa vivendo um caminho católico, e que aplica à sua vida todos os mandamentos de Cristo. Como o Padre Justin Popovits ensina, os membros da Igreja “vivem com o que Lhe é próprio(do Cristo), eles possuem o que Ele possui, e ele sabem através do conhecimento Dele, porque pensam com uma mente católica da Igreja, sentem com um coração católico da Igreja, e desejam com um desejo católico da Igreja e vivem uma vida católica da Igreja”. Somos membros da Igreja “através da vida una, santa e católica da Igreja, da fé santa e católica da Igreja, da alma santa e católica da Igreja, da consciência santa e católica da Igreja, da mente santa e católica da Igreja, da vontade santa e católica da Igreja. E que tenhamos tudo em comum e católico, a fé, e amor, e justiça, e oração, e jejum, e verdade, e tristeza e alegria e salvação e deificação e teoantropocidade, e imortalidade, e eternidade e benção”[2].

d) Apostólica

A Igreja é chamada apostólica por muitos motivos. Primeiro porque começa em Cristo e Ele é o Apóstolo e Sumo-Sacerdote da confissão. Cristo foi enviado por Seu Pai para fazer a Igreja Seu Corpo e, portanto, para permanecer unido a Ele para sempre.

O Apóstolo Paulo escreve em sua epístola aos hebreus: “Portanto, santos irmãos, coparticipantes do chamado divino, o apóstolo e sumo-sacerdote de nossa confissão, Jesus Cristo” (Heb. 3,1). Cristo é chamado apóstolo e sumo-sacerdote.

Igualmente a Igreja é chamada apostólica porque está baseada no fundamento dos apóstolos.(...) Além disso, é chamada apostólica porque é, também, patrística. Os santos pais nos garantem a apostolicidade da Igreja. Eles são sucessores dos apóstolos, não apenas através da transmissão da graça do sacerdócio, mas porque eles mesmos alcançaram a mesma experiência dos Santos Apóstolos. Realmente, a sucessão apostólica é, por um lado, a ordenação ininterrupta e transmição da graça do sacerdócio, e por outro lado a participação do homem na energia purificadora, iluminante e deificante de Deus.

(...)

Para concluir este assunto, posso dizer que a Igreja é o Corpo de Cristo e uma comunhão de deificação. As características da Igreja são: “uma, santa, católica, apostólica”, e não são independentes uma da outra. Cada uma pressupõe a outra.

A Igreja não é uma organização humana, não é uma lista de pessoas mortas. É o Organismo Divino-humano. E devemos constantemente buscar ser e permanecer membros vivos da Igreja, para experimentar, não intelectualmente mas espiritualmente, a unidade, catolicidade e apostolicidade da Igreja.



[1] John Romanides: The Ancestral Sin (O Pecado Ancestral), ed. Domos, 28-29.

[2] Archim. Justinos Popovich, p. ct. p.62f